
“A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell”, adaptação hollywoodiana da clássica animação japonesa e do mangá, estreia nesta quinta-feira (30) nos cinemas. Tive a oportunidade de assistir ao filme em evento fechado da pré-estreia, a convite da Paramount Pictures, na sala IMAX do Itaú Espaço Cultural em São Paulo.
O longa estrelado por Scarlett Johansson é um dos mais aguardados do ano. De forma surpreendente, “A Vigilante do Amanhã” conseguiu reverter parte da mídia negativa do início do projeto conforme os materiais de divulgação do filme eram lançados, do ceticismo dos fãs do material original às acusações de whitewashing pela escalação de Scarlett como a protagonista Major Mira Killian.
O “Ghost in the Shell” original é considerado um dos clássicos da animação japonesa e do gênero cyberpunk, gênero de ficção científica que tem como cenário um futuro distópico em que a tecnologia é usada para dominação ou destruição da sociedade. O título influenciou fortemente a trilogia “Matrix” e aborda questões filosóficas como a relação entre homem e máquina, o dualismo mente-corpo e a consciência do indivíduo.

Dias antes, participei na Associação Japonesa de Santos da organização da exibição do animê original de 1995. O evento contou com uma palestra ministrada pela Profª Drª Sonia Luyten, renomada pesquisadora da cultura pop japonesa, que falou sobre a obra original e trouxe à tona justamente as questões filosóficas e elementos da cultura tradicional do Japão.
As dúvidas, no entanto, continuavam. O diretor Rupert Sanders conseguiria realizar uma adaptação que seria uma homenagem à altura da importância do título? Conseguiria entregar uma história que possa gerar bilheteria mantendo a carga filosófica do material original? Scarlett Johansson faria uma Major que fosse fiel ao animê?
Ao assistir ao filme, dá pra dizer (sem spoilers): sim para todos.

Depois do fracasso de Dragon Ball Z Evolution e ver o clássico Speed Racer ser transformado em um grande comercial de Hot Wheels, era de se esperar que os fãs ficassem com um pé atrás. Entretanto, o diretor – que revelou ser fã do animê, por sinal – fez um magnífico trabalho ao misturar elementos de diversas fases da franquia (do longa animado à série Stand Alone Complex), replicando inclusive diversas cenas do clássico original, para criar sua própria história.
A clássica sequência da criação da Major foi uma das criadas idênticas ao longa animado, em seus mínimos detalhes. Só a música original que ficou de fora. A cena da luta na água, o mergulho no oceano, e o combate contra o tanque – que foi o clímax do filme de 1995 -, são alguns outros exemplos que também foram transportados para a versão live-action.
Em IMAX 3D, a fotografia de “A Vigilante do Amanhã” e o uso do efeito tridimensional são impressionantes e muito bem calibrados. As imagens carregam uma forte influência de outro clássico cyberpunk: Blade Runner. Ao ponto de Kuze (Michael Carmen Pitt), inimigo a ser combatido por Major, lembrar um pouco Roy Batty em uma cena do longa.
A carga filosófica da animação de 1995 está presente na adaptação de Sanders. Talvez tenha sido esse o maior desafio da versão de Sanders para o enredo. Ela aparece diluída em diversos momentos do filme em que são abordados a ética, a identidade, a interação homem-máquina e a existência humana. A abordagem é bem sutil comparada ao animê, mas mesmo assim está lá.

Já Scarlett Johansson tem uma atuação impecável, o que pode fazer de “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” a sua grande marca como protagonista. Suas atuações como Viúva Negra (Capitão América: Guerra Civil) e Lucy já deixam claro que ela tem a experiência em filmes de ação e em papéis envolvendo ficção científica. E, vamos combinar, o fato de ser uma androide já derruba por terra a exigência de uma atriz oriental para o papel principal.
É bom lembrar que “A Vigilante do Amanhã” é um ponto fora da curva justamente pelo fato da protagonista de um filme de ação/ficção científica/cyberpunk ser uma mulher. E Scarlett não faz feio ao incorporar Major, que apesar de humana possui um corpo cibernético. É incrível ver a ausência de emoções faciais, o não piscar dos olhos, e até a postura corporal ao incorporar a personagem – respeitando o material original -, assim como sua própria caracterização.
Outro ponto alto do filme é a participação de “Beat” Takeshi Kitano, renomado ator e diretor japonês de 70 anos, no papel de Aramaki. Interessante observar que na versão com áudio original legendado suas falas foram mantidas em japonês, e sua participação nos momentos-chave do filme é notável, inclusive nas cenas de ação.

Obviamente existem outros detalhes do longa que merecem a atenção de quem aprecia o animê de 1995, mas parte deles estão envolvidos diretamente com o desenrolar do enredo. Inclusive o que resolve a polêmica do filme nunca ter usado o nome original da personagem, Motoko Kusanagi, nos materiais de divulgação.
Aliás, o sobrenome original faz referência à lendária espada japonesa Kusanagi, uma das três relíquias imperiais japonesas envoltas em contos mitológicos. No folclore japonês, a espada significa a virtude primária da valentia e seria guardada por sacerdotes shintoístas. Elas só seriam usadas nas cerimônias restritas da coroação da família imperial, e nunca foram mostradas em público. Seu simbolismo lembra a espada britânica Excalibur.
“A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” é, finalmente, a adaptação que um animê e mangá sempre mereceu no cinema ocidental. Mesmo sendo uma adaptação com objetivos de alcançar resultados de bilheteria com uma audiência mais ampla. Talvez seja o “Blade Runner” para uma nova geração, que também usará do filme para conhecer mais sobre a cultura japonesa. Como disse Rupert Sanders em entrevista na première mundial, em Tóquio: “Eu espero que nós tragamos muito mais pessoas para essa parte surpreendente da cultura japonesa, que é o animê e o mangá, e espero que abra portas para que as pessoas queiram saber mais sobre estas obras de arte”.
Nós nos apegamos às memórias como se elas nos definissem, mas não. O que fazemos é o que nos define.
Major Mira Killian